Ansiedade em tempos de guerra

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Ansiedade em tempos de guerra

Os minutos que antecedem o horror de um iminente ataque, com sirenes a marcar o compasso bélico de uma cidade gélida vazia, em toda a sua beleza arquitetural eslava, como Kiev, são de uma crueldade sem fim. Rostos de homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, entre animais e pertences, abrem os noticiários, amontoados em estações de metro, muitas deles sem saber se estarão vivos de madrugada.

Nunca se falou tanto em saúde mental, ansiedade e depressão nos últimos anos como com a pandemia de COVID-19 que alterou muitas das nossas rotinas e trouxe um conjunto de incertezas e imprevisibilidades às nossas vidas. E quando a situação parecia – vamos dizer assim – “estabilizar”, findo o pico do Inverno, um novo evento traumático veio a capitalizar todas as atenções mediáticas: a guerra na Ucrânia. O que muitos/as achavam ser apenas um exercício performativo de força, incluindo eu, tornou-se real: a Rússia efetivamente invadiu a Ucrânia, violando assim a Lei Internacional e contando hoje, no dia em que escrevo, com a oposição expressiva de uma parte significativa do mundo. As histórias que nos chegam da Ucrânia – como o ataque de um tanque de guerra que deliberadamente atropela um carro de um civil ou o sacrifício de 13 soldados ucranianos numa pequena ilhota que se recusam a render perante a Marinha russa – entre fake news e semiverdades, são de um horror cuja projeção, direta- ou indiretamente, só pode partir de intencionalidades perversas e beligerantes. Os minutos que antecedem o horror de um iminente ataque, com sirenes a marcar o compasso bélico de uma cidade gélida vazia, em toda a sua beleza arquitetural eslava, como Kiev, são de uma crueldade sem fim. Rostos de homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, entre animais e pertences, abrem os noticiários, amontoados em estações de metro, muitas deles sem saber se estarão vivos de madrugada. Tudo sem uma justificação plausível, movido pelos caprichos ideológicos de alguns líderes do nosso tempo para os quais a Guerra (Fria) parece ainda não ter acabado com a queda do Muro de Berlim e parece ser, parafraseando Carl von Clausewitz, “a continuação da política por outros meios".

 

A geração Millennium, que foi assim assistindo impávida ao massacre em Timor-Leste aquando da sua Independência ou à Guerra ao Terror, lançado por George Bush no rescaldo do 11 de setembro, em países como o Iraque ou o Afeganistão, continua a viver na ilusão de que “guerra”, no seu sentido mais bruto, seja uma coisa do passado, mas, paranóia ou não, a escalada de tais acontecimentos na Ucrânia puseram-nos rapidamente a equacionar a possibilidade real de uma Guerra Nuclear, revelando já um certo nível de ansiedade coletivamente partilhada. Tal ficou muito claro quando a cavalaria russa tomou Chernobyl, lançando o pânico generalizado na mais incauta das criaturas.  Ainda assim, certamente ninguém viverá o drama da ansiedade como aqueles/as milhares de ucranianos/as, muitos/as deles/as com filhos menores, que tiveram que abandonar as suas casas e vidas para fugir ao flagelo da guerra, ou aqueles/as que ficando – idosos, pessoas incapacitadas, homens obrigados a cumprir o dever militar –, vivem os seus dias como se fossem os últimos. O drama das pessoas refugiadas no coração da Europa adquire agora uma nova tonalidade quando quem debanda, são os próprios europeus. E não se trata apenas só de sofrimento físico, mas também das perdas económicas e das dificuldades associadas a essas perdas; um recomeçar de novo no meio dos destroços que sempre se avizinha como imbricado e revela novos perigos à espreita nos países acolhedores como, por exemplo, o tráfico humano ou o tráfico sexual, de um povo de si já com os seus problemas endémicos de indigência e precariedade.

 

Ansiedade entre destroços

 

Quando um míssil russo cai no centro da urbe, ele estilhaça a alma das pessoas, mas também a memória de um povo. Medo, angústia, pânico ou impotência são alguns dos sentimentos e emoções negativas que, nos últimos dias, temos experienciado. Sentir apreensão, dúvida ou expectação é normal, mas assume contornos de distúrbio quando esses sentimentos são intensos, frequentes e incapacitantes, razão pela qual a ansiedade, enquanto sensação genérica de nervosismo, medo e preocupação, é um problema desestruturador e, em muitos casos, incapacitante. Na verdade, como transtorno propriamente dito, a ansiedade está hoje incluída como um grande problema de saúde pública, causando sintomas físicos concretos como dores no peito, fadiga, palpitações, distúrbio do sono, e é um preditor clássico comum no desenvolvimento de depressões. O contexto tem certamente uma influência na intensificação dessa sensação e o contexto de guerra é, pela sua natureza, indutor de ansiedade uma vez que nos coloca na ingrata sensação de perigo iminente. Por se tratar de uma guerra num país tão próximo (no mesmo continente), por estarmos constantemente em contacto com notícias sobre o acontecimento, por conhecermos pessoas ou familiares de pessoas que estão a passar pela situação no local, a iminência torna-se demasiado real. Bastaria o senso comum para explicar como a guerra (real ou imaginada) potencializa sentimentos de ansiedade e induz ou adensa quadros de depressão, mas estudos, sobretudo na área da Psicologia, demonstram muito claramente como os indicados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.

 

Portugal tem uma experiência muito particular com a Guerra, em detrimento da Guerra da Ultramar/Guerra Colonial que provocou 45 anos depois, em milhares de militares portugueses/as, profundas sequelas, nomeadamente stresses pós-traumático. As feridas da guerra continuam a fazer-se sentir em muitas pessoas que, ao longo do tempo, foram desenvolvendo quadros de depressão. Também hoje milhares de ucranianos/as perderam – e seguem infelizmente perdendo – entes queridos, outros não sabem sequer o seu paradeiro, na mescla de cadáveres que permeiam as estradas bombardeadas das principais cidades ucranianas. Anos e anos de trabalho, poupanças e dedicação são jogados no lixo, conjuntamente com as cinzas dos edifícios. Casas e vidas são literalmente desfeitas obrigando a um recomeço do 0. E importa lembrar que também que muitas pessoas russas, que se opõem veemente contra esta guerra, sentem o mesmo tipo de ansiedade: por entrarem (ou verem outros a entrarem) numa guerra que não desejam. Um período de grande incerteza avizinha-se para a Europa, para os países em questão e para o mundo, inclusive em termos económicos. Todo este cenário é potencializador de ansiedade e exige que os/as profissionais de saúde mental estejam preparados (em primeiro lugar, mentalmente, e depois profissionalmente) para ajudar.

 

Da depressão da guerra à guerra contra a depressão

 

Um grupo de sete psicólogos disponibiliza-se para dar apoio psicológico e emocional, pro bono, à comunidade ucraniana residente em Portugal e a que chegue ao nosso país refugiada da guerra e estas iniciativas tendem a multiplicar-se, exigindo equipas com conhecimento especializado e competências basilares para fazer frente aos desafios. Contudo, nem sempre isso acontece, carecendo estes/as profissionais de formação especializada para lidar com os fenómenos de ansiedade e depressão, sobretudo em contexto de guerra. Como um país com uma grande população imigrante ucraniana – uma das maiores comunidades migrante no nosso país –, Portugal tem, não só o papel, mas o dever de usar todos os mecanismos diplomáticos vigentes para travar este conflito nonsense. Somos um país relativamente pequeno, com pouco poderio militar, mas com relações de excelência com todo o mundo – razão pela qual somos o 5.º país mais pacifico do planeta, e com o 5.º passaporte no nível dos mais poderosos –, um interlocutor histórico entre América, África e Eurásia, com a nossa força a residir nessa capacidade de ser um soft power. Mas podemos intervir de diversas formas e uma delas é através da educação das populações e também dos profissionais que trabalham com comunidades de refugiados. Sempre com uma visão de futuro, preocupada com os direitos humanos, o bem-estar das populações e a integridade territorial de todas as nações, o Instituto CRIAP opõe-se claramente a qualquer solução que envolva algum tipo de confronto físico ou bélico, defendendo sempre, por sua vez, a resolução de situações por via da negociação e do diálogo construtivo.

Por sua vez, entende-se que a educação e a formação são armas centrais na guerra contra a guerra e também pela saúde mental. Nesse sentido, não podemos deixar de destacar formações que incidam sobre as problemáticas da ansiedade, da depressão e do trauma. É o caso da Especialização Avançada em Terapia Cognitivo-Comportamental na Depressão e Ansiedade que, tendo como objetivo consolidar o conhecimento teórico e o domínio técnico das estratégias e técnicas da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) para a Depressão e para as Perturbações da Ansiedade, apresenta-se como uma mais-valia para os profissionais que intervém ou venham a intervir em contexto de guerra ou com comunidades de refugiados. Recordando Judith Butler, de certa forma, “toda guerra é uma guerra sobre os sentidos. Sem alterar os sentidos, nenhum estado poderia fazer guerra.” As pessoas acham que a Guerra eventualmente termina um dia, mas ela se prolonga para lá da decretação do seu final, nos traumas, nas impossibilidades, nos dramas de quem teve a sua vida (biológica ou social) suspendida. Não é possível olhar-se para a incerteza desesperada daquelas pessoas amontoadas num bunker e não se sentir angustiado, imaginando sempre como seria se fossem os nossos entes queridos… Podemos não mudar estruturalmente a curto prazo o rumo dos acontecimentos (e num mundo pós-moderno como o nosso, a velocidade a que eles ocorrem é de natureza sónica), mas podemos insistir na educação para a civilidade e continuar a formar para os direitos humanos e para a convivência pacífica de todas as nações. Talvez num mundo que clama por paz, essa é a única luta pela qual faz sentir lutar.

 

 

Pretende aprofundar mais ansiedade, contextos de guerra e intervenção com populações refugiadas? Inscreva-se na Especialização Avançada em Terapia Cognitivo-Comportamental na Depressão e Ansiedade e conheça todas as particularidades destes temas.

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Artigo da autoria de:
Hugo Santos

Hugo Santos é Licenciado, Mestre e Doutor em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCE-UP), onde se envolveu em diversos projetos de investigação e intervenção cívica e social (e.g., IP-CHALID/Turquia, IP-H.E.L.P./Eslováquia e IP-ERASMUS/Hungria). Com a sua tese de Doutoramento sobre diversidade sexual em contexto escolar, na linha da investigação educacional sobre juventudes, cidadania e participação, ganhou o Prémio SPCE/De Facto Editores 2018 da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, uma das mais altas distinções nacionais na área das Ciências da Educação. Com experiência recente em projetos sobre jogos sérios (e.g., JoSeES), tem adquirido um crescente interesse pela área das novas tecnologias educacionais, gamificação e da formação à distância. Com o CCP, atualmente exerce a atividade de Técnico de Formação no Departamento de Ensino à Distância (EaD) do Instituto CRIAP, construindo assim um percurso sólido na área da Educação e Formação.